Recensão de Manuel Portela aos espetáculos "My Inner Mind" e "Nano T"
MIM (lembrando-me de)NANO T: uma memória pós-teatro após o teatro
Dedicado a Mário Montenegro e a Alexandre Lemos.
MIM, acrónimo de My Inner Mind, é um espetáculo que sugere uma viagem à mente humana criando uma analogia entre o percurso feito dentro do edifício da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e um possível percurso pelo interior da mente e das estruturas cerebrais que a produzem. Todavia, átrios, corredores, escadarias, sala de reuniões, laboratório e anfiteatro – os vários espaços por onde atores, músicos e espetadores transitam – não são apenas etapas da viagem correspondentes a áreas e funções cerebrais. São também espaços que representam agentes e práticas concretas de conhecimento científico. Inicialmente, os espetadores foram levados a vestir uma bata branca de laboratório, tomando assim consciência do papel do investigador como agente produtor de um certo modo de conhecimento. O espaço funcional do Centro de Neurociências e Biologia Celular da UC desdobra-se no espaço de representação teatralizada da ciência.
Quem conhecer o trabalho anterior da marionet, reconhece de imediato o seu método criativo: não se trata de tematizar verbalmente a ciência no teatro, isto é, de fazer com que as personagens falem de ideias e conceitos científicos, mas de fazer com que as próprias ideias e conceitos se materializem na forma do espetáculo – na espacialização da cena, nos movimentos dos atores, nos usos da luz e do som, nos papéis relativos de espetadores e elementos da cena. A inscrição da cena num espaço de produção de ciência decorre de um modo particular de escrever a cena, fazendo com que os objetos e os espaços do centro de investigação possam ser habitados como lugares de teatralização e, ao mesmo tempo, seja possível inscrever nesses espaços – através de textos, imagens, projeções, luzes – as camadas de sentido específicas deste espetáculo. A estratégia é, de certo modo, de contaminação mútua: contaminar o espaço e a prática da ciência com o espaço e a prática do teatro, e vice-versa.
Uma dessas camadas de sentido diz respeito à memória como produto do funcionamento cerebral, e aos processos de esquecimento e lembrança que dependem desse funcionamento. E é justamente no jogo com a capacidade de os espetadores memorizarem o espetáculo enquanto assistem a ele (ou quando sobre ele escrevem, como faço agora) que MIM se torna autorreflexivo, fazendo com que a estrutura do seu desenrolar seja ao mesmo tempo uma montagem de vários tipos de recordações de múltiplos sujeitos (incluindo as dos atores e dos investigadores que estudam o cérebro e a memória) e um exercício que obriga o espetador a tornar-se consciente do modo como a sua memória vai guardando a experiência de atravessar o arquivo de memórias em que o espetáculo transformou o edifício. A possibilidade dada ao espetador de usar próteses da memória – como a câmara de fotografar e de filmar durante o percurso do espetáculo – é uma outra estratégia para reforçar essa experiência da natureza e dos limites da memória. Num certo sentido, MIM poderia ser descrito como um teste clínico sobre a memória feito com recurso a um protocolo teatral. Por outras palavras, o método da marionet parodia também o método da ciência.
O principal dispositivo na recriação do funcionamento da memória (e portanto daquilo que no cérebro garante a continuidade de um eu autobiográfico como pulsar da mente consciente) é o jogo entre a luz e o escuro ao longo de toda a Via Cerebral. As pequenas cenas que se vão iluminando nas várias estações do percurso são entrecortadas por hiatos de penumbra, como se através destas constantes interrupções se recriassem os fluxos de transmissão entre neurónios que sustentam os padrões de perceção, consciência e memória. Como se medissem as variações no fluxo de oxigenação das zonas cerebrais mais ativas, os espetadores são tomografadores que vão fatiando as recordações geradas pela mente dos atores – recordações que lhes serviram de ponto de partida para escreverem os textos e que agora são ativadas enquanto textos e movimentos memorizados, cujo arquivo os seus hemisférios cerebrais processam em palavras e movimentos capazes de gerar a ação que constitui a representação teatral. Os espetadores, por seu turno, veem as recordações encenadas e os espaços reais a tomar forma diante de si como se visitassem uma mente alheia e, ao mesmo tempo, sentem o processo através do qual a sua própria mente vai gerando recordações daquilo que acabam de percecionar.
Isto significa que o jogo de luz e escuro como articulação cénica das diferentes estações da Via Cerebral funciona duplamente. No plano da ação representada simbolicamente, este jogo recria os complexos padrões eletroquímicos que desencadeiam os processos de associação que trazem à mente memórias específicas. Estas memórias, aparentemente desconexas, justapõem-se segundo uma lógica que escapa ao sujeito – dependente da qualidade da atenção e da intensidade emocional com que viveu os acontecimentos, mas também de fatores aleatórios e inconscientes –, dando ao espetáculo a lógica de uma montagem onírica que justapõe memórias de diversas cenas vividas ou que liga entre si um conjunto de sonhos truncados. No plano da ação vivida pelo espetador, aquele jogo de luz e escuro dá-lhe a experiência da relação entre esquecer e lembrar, tornando aquilo que não consegue ver ou que só consegue ver parcialmente numa emulação da experiência do ato de recordar e daquilo que nesse ato traz à mente o funcionamento autónomo da própria mente. Por outras palavras, o espetáculo está concebido para materializar experiencialmente (e experimentalmente) aquilo de que fala, obrigando o espetador a sentir corporalmente a sua mente interior.
As relações dinâmicas que MIM estabelece entre os sentidos, por um lado, e o movimento, por outro, servem esse propósito de ativar memórias que singularizem o espetáculo e a presença do espetador como percecionador em movimento nesse espetáculo. MIM está construído para se alojar emocionalmente na memória do espetador tal como algumas das recordações que os atores escolheram encenar representariam o acontecido das suas vidas mediado pela memória. A ativação das cinco portas da perceção (visão, audição, tato, olfato, gosto), a manipulação háptica dos objetos no bolso da bata (caixa de fósforos, boneco de plástico, cartão, etc.) e no bilhete-caixa-de-cartas de lembrar e esquecer (que trazem nas margens falas da peça), a perceção cinética da deslocação do corpo num espaço que se vai tornando progressivamente labiríntico e a reação dos centros emocionais do cérebro à alternância entre presença e ausência de luz funcionam como indutores explícitos de novas memórias capazes de traduzir o conhecimento científico na experiência teatral. Ao provar a couve-flor cerebral, numa espécie de autotransubstanciação da matéria do alimento em matéria da mente, o espetador guarda na metáfora do cérebro a metáfora do teatro.
O acrónimo MIM pode ainda ser lido como um diagrama especular em que o M de cada lado do I representa o desdobramento do sujeito em objeto, através do mecanismo da memória e daquilo que nesse processo produz a consciência de si mesmo. Este desdobramento torna-se autorreflexivo noutros níveis: enquanto desdobramento do investigador que analisa células neuronais para conhecer o funcionamento cerebral humano e enquanto desdobramento do espetador obrigado a dividir-se em observador e participante nessa construção do teatro como percurso pelo espaço da memória, alheia e sua. Um espetáculo que toma como objeto as práticas de conhecimento do cérebro e que se constrói a partir das memórias dos seus autores escreve-se cenicamente de um modo que leva os espetadores a interiorizá-lo como memória singular. Esta recriação teatral do dinamismo da memória através de constantes desfocagens e refocagens da atenção e da emoção é conseguida também através da integração de várias linguagens artísticas e performativas (instalação, teatro, performance, dança, música), cuja heterogeneidade evoca a heterogeneidade das perceções e experiências humanas como matéria de constituição da memória e do próprio sentido de subjetividade.
A forma da instalação, por exemplo, está presente no modo como vários espaços do percurso foram sujeitos a inscrições de texto, colagens de imagens e projeções de slides, que o espetador conseguirá apreender apenas de forma parcial à medida que transita por elas e conforme as condições de luminosidade de cada momento. As tecnologias de inscrição funcionam como extensões externas da memória e como fonte de novas memórias, retroalimentando o cérebro através da escrita e da imagem. Num dado momento, a projeção de fotogramas de filmes, com legendas inscritas, sintetiza esta relação protética com os dispositivos de representação como fonte adicional de recordações e mostra a descontinuidade e seletividade como processos intrínsecos à produção de memória. Os processos de inscrição, incluindo os da representação teatral, funcionam como objetos adicionais de produção de memória.
É no espaço do anfiteatro que surge explicitamente o teatro dentro do teatro, através de breves ensaios que encenam a própria memória enquanto teatro, reconstruindo três momentos cujo conteúdo emocional – associado à violência, ao desejo e ao medo – corresponde a três registos de memória primordiais na existência dos seres humanos. Este momento constitui, de certo modo, uma breve evocação das origens do teatro através da referência paródica ao anfiteatro da antiguidade e, sobretudo, através da sugestão de que o impulso teatral remonta a esse conteúdo emocional profundo da memória individual. O teatro seria ele próprio um produto cerebral, expressão consciencializada de uma mente interior que dá forma figurável a um conjunto vívido de experiências anteriores. Os três breves ensaios são materializações de um monólogo interior cuja corrente de consciência vai encenando gestos e falas segundo uma coreografia inscrita na memória.
A experiência do funcionamento memória na constituição instante a instante do sentido de MIM mostra-me a impossibilidade de controlar o fluxo contínuo da memória na representificação de momentos e experiências anteriores, que se entrelaçam associativamente com objetos da perceção presente. Além disso, uma oscilação constante entre lembrança e esquecimento condiciona a presentificação das memórias no sujeito e manifesta-se de diversas formas: como apagamento que a passagem do tempo produz sobre a vividez de certos acontecimentos, mesmo os de natureza dolorosa e traumática; como ressurgimento vívido de recordações de acontecimentos esquecidos da infância e da adolescência; como impossibilidade de recordar até as ações mais recentes devido a doenças cerebrais.
A forma da dança-teatro ou, pelo menos de um teatro do movimento corporal, pontua algumas das cenas do percurso, a começar pelo quadro de abertura, que é acompanhado de música ao vivo. Este quadro de abertura trouxe a MIM a peça anterior, NANO T, a que assisti em julho de 2012. Neste caso, a nanotecnologia constituiu o universo de referência de um espetáculo em que os espetadores eram sentados em semicírculo ao fundo do palco. A ação decorria entre esse limite (ao qual os atores regressavam repetidas vezes) e a área interior do semicírculo até à cortina de fogo, que encerrava o espaço, e na qual toda a coreografia das nanopartículas se desenrolava. A cortina de fogo foi ainda usada para projeções a preto e branco que combinavam imagens captadas anteriormente dos próprios atores com imagens captadas em tempo real. Foram o rosto e os movimentos da atriz Lucília Raimundo naquele quadro inicial de MIM que me fizerem recordar, sem fazer qualquer esforço para isso, o espetáculo anterior. Refaço agora voluntariamente esse esforço de recordação de um espetáculo mais recuado no tempo, testando o modo de funcionamento cerebral sugerido por MIM.
NANO T começa com os espetadores a ocuparem o semicírculo formado pelas cadeiras no palco e com a inscrição repetida de linhas ondulados e quebradas a giz branco sobre a superfície negra do chão, sugerindo o registo das oscilações das trajetórias das partículas tal como se fossem representadas diagramaticamente em dispositivos de visualização. A posição e os movimentos corporais da atriz que produz estas inscrições e o modo como elas servem para marcar e coreografar a trajetória dos movimentos dos atores colocam-nos fisicamente no universo das nanopartículas como se pudéssemos observar a dinâmica das suas interações ao microscópio eletrónico. Ao mesmo tempo em que evocam a notação matemática que descreve as propriedades e o comportamento físico das partículas, as inscrições sugerem a abstração do espaço teatral como lugar de ação e representação. Três bacias com água e três panos permitirão aos atores retraçar as inscrições apagando-as, emulando nessa coreografia a evanescência dos processos moleculares, atómicos e subatómicos, e dos registos desses processos.
A coreografia desenvolve-se sob a forma de constantes alterações da posição e da velocidade relativa dos atores, sugerindo a dinâmica quântica da nanoescala. Num dos quadros do espetáculo o inimaginável dessa escala é analogicamente traduzido pelas dezenas de pequenos sacos que recolhem o ar da sala, tornando visível a presença da matéria que constitui o ar. Espalhados entre os corpos-partículas dos atores sugerem as ligações químicas e as interações físicas que determinam o seu comportamento. Estas são as principais estratégias formais de ligação entre a escala macroscópica da física aplicável ao corpo humano em cima de um palco e a escala nanoscópica da física aplicável à escala atómica das nanopartículas. Tal como em BCC Blind Carbon Copy (2011), em que a observação microscópica dos macro-invertebrados foi traduzida coreograficamente nos movimentos individuais e coletivos, também em NANO T a incorporação da ciência ocorre na forma física e material do espaço e da coreografia do espetáculo, e não apenas a nível da tematização simbólica.
A capacidade de mostrar os movimentos dos músculos das diferentes partes do corpo para além de qualquer vocabulário simbólico de emoções e sentidos codificados é um dos modos através dos quais NANO T se oferece como um objeto autorreflexivo pós-teatral. O espetador é chamado a ver as nanopartículas, pensando em cada um dos atores como encarnação de uma partícula, e vendo na repetição obsessiva de movimentos, gestos e palavras a dinâmica da performatividade do corpo e da linguagem como instrumentos de ação. A resistência ao simbólico e aos modos convencionais de perceção e descodificação do espetáculo colocam-no nesse lugar além do teatro, como se a teatralidade deixasse de poder ser apreendida nesta escala de observação a não ser como uma distribuição estatística de partículas das quais apenas emergem padrões de movimento e de linguagem que já não é possível refazer narrativamente. Os hiatos e descontinuidades verbais e coreográficos não permitem um ponto de vista macroscópico unificador, mas apenas a experiência da radical oscilação coreográfica da matéria.
Não se trata apenas de alegorizar o movimento das partículas no movimento dos corpos dos três atores, mas de propor a fisicalidade da sua presença integral num registo que se aproxima, por vezes, da dança-teatro. Este movimento de vai e vem em direção ao simbólico toma a forma de uma oscilação entre o puro movimento do corpo nas suas possibilidades musculares e a pura abstração do número 10-9 que designa a nanoescala. A fisicalidade das interações em palco aproxima-se e afasta-se repetidamente da figuração simbólica, ora fazendo com que os corpos dos atores coincidam inteiramente consigo próprios, ora tornando-os, através de palavras e movimentos interpretáveis, em signos de interações humanas, incluindo momentos de reflexão metateatral. Por outras palavras, NANO T tornou-se também uma investigação das nanopartículas da performance – da performance teatral e da performance coreográfica enquanto artes do palco, mas também da performance social realizada pelos gestos e palavras que regulam as nossas relações quotidianas. A projeção simultânea de imagens na cortina que delimita e encerra o espaço do palco reforça essa presença matérica e, ao mesmo tempo, espectral da teatralidade, como se a possibilidade de imaginar corporal e simbolicamente a nanoescala só pudesse ser feita através de inferências e observações oblíquas e indiretas.
Ambas as peças propõem modos de experimentar imaginar o inimaginável – da matéria e do cérebro – criando interferências entre as linguagens da ciência e as linguagens do teatro. Em NANO T, essa interferência consiste em criar uma experiência de intenso estranhamento físico que mostra a distância entre a escala das partículas e a escala do corpo humano. Em MIM, a interferência ocorre através da invenção de um modo de converter a escala humana das circunvoluções dos corredores do edifício (que atores e espetadores percorrem) na escala celular das neurotransmissões necessárias à persistência da memória. Num e noutro caso, os limites do teatro são esticados para além do teatro, dando-nos uma outra linguagem para articular a experiência de produzirmos um determinado conhecimento da matéria, incluindo a matéria que torna possível evocar-me agora como memória de mim.
Manuel Portela
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